Diários de extranjera #2: o direito de ser latino

É incrível como a palavra latino é usado hoje em dia para categorizar coisas que parecem parecidas de primeira, mas são bastante diferentes. Todo dia quando abro o twitter (pelo menos no meu twitter é assim), vejo essa palavra sendo usada nos mais diversos contextos, e me peguei pensando que acho que o verdadeiro sentido dela está se esvaziando. É coerente, pois quando algo é dito à exaustão, a ponto de ninguém mais saber exatamente qual o significado real, a coisa acaba se perdendo.

Mas o que, de fato, é ser latino?

Me pego questionando isso há anos, mas se intensificou quando morei nos Estados Unidos. E aqui é bom destacar que considero os Estados Unidos o grande causador de todo o estresse envolvendo a palavra.

Latino, em essência, diz respeito às pessoas que fazem parte da América latina, que é uma região no continente americano que engloba os países que falam, em sua maioria, as línguas românicas. Dentre nós, compartilhamos uma história de colonização e miscigenação, além de vários traços culturais em comum e um estilo de vida parecido também. Apesar disso, por causa da barreira linguística entre o Brasil e a maioria dos nossos vizinhos, só de alguns anos para cá que vejo aparecer no imaginário brasileiro a consciência de que pertencemos sim a esse grupo.

Quando eu era mais nova, me sentia muito distanciada dos hermanos, mesmo consumindo assiduamente a TV mexicana e argentina. Sempre enxerguei no México, por exemplo, um país extremamente parecido com o Brasil, como uma segunda casa, coisa que pude comprovar quando visitei o país Nós temos tradições parecidas, um "jeitinho" parecido, problemas sociais parecidos, um monde de agir e pensar muito parecido. Mas o que mudou de décadas atrás até agora para que os brasileiros (ao menos os da minha bolha) passassem a finalmente se sentir latinos também?

Um dos motivos, ao meu ver, é a música. Apesar de todas as semelhanças, a língua é um grande facilitador e também uma grande barreira quando se trata de se sentir parte de algo. Como posso ser dessa família se sequer falamos o mesmo idioma? O Brasil, gigante isolado pelo português, sempre teve um mercado musical bastante fechado, em que consumimos a música feita aqui e nos ilhamos na nossa bolha fonográfica. Sempre tivemos muitos ritmos diferentes, expressões artísticas diferentes somente dentro do nosso país, e ficamos de fora do intercâmbio musical que acontece em grande escala entre nossos vizinhos falantes de espanhol. É claro que é mais fácil pra eles conseguir transitar entre territórios com mais facilidade e sem uma estranheza inicial, já que falam a mesma língua. E enquanto no Brasil os ritmos populares e em ascensão se tornaram o funk e o sertanejo, o reggaeton se consolidou de maneira massiva entre praticamente todo o resto do continente.

Nessas horas, é bom lembrar também que o Brasil sempre foi extremamente colonizado pelos Estados Unidos e a venda muito bem sucedida deles sobre "o sonho americano" (e não vou entrar em muitos detalhes porque dá pra escrever um artigo só sobre isso!). Faz parte do imaginário brasileiro idealizar os Estados Unidos como o lugar superior, e obviamente, quando importamos qualquer tipo de entretenimento, é de lá. Por muitos anos a hegemonia musical americana tomou conta do nosso país, e aqui podemos citar que, enquanto crescemos achando que os EUA eram superiores a nós na pirâmide socioeconômica global, também achávamos que nós éramos superiores ao resto da América latina. E, se eu sou superior, por que vou me misturar com o que eles estão fazendo, por que vou consumir o que vem deles? A barreira entre nós não era apenas linguística, mas xenofóbica, um complexo de superioridade que nos foi ensinado, almejando ser um "país de primeiro mundo" como os americanos. Ao menos, dentro da América latina, a gente se sentia "grande" por não ser o parente mais pobre.

Mas então, como foi que isso mudou?

Na verdade não mudou, né? Pois infelizmente o que mais tem no Brasil ainda é xenofobia com os hermanos. Mas é possível afirmar que as barreiras culturais que tínhamos ficaram mais brandas. É claro que a globalização e a internet foram o instrumento fundamental para isso, trazendo para o mainstream outros mercados que não o americano. Assim vimos o Kpop ganhar o mundo, as novelas turcas se populatizarem, e o reggaeton explodir para além da América latina e ser um fenômeno cultural gigantesco. O reggaeton passou a ser conhecido como "música latina", e artistas como Bad Bunny, J Balvin, Maluma, Karol G ocupam as paradas globais e invadiram também adivinha quem? A indústria americana! E o Brasil não ficou imune a isso.

Aos poucos fomos introduzidos a artistas que já eram gigantes nos nossos vizinhos, mas nunca tínhamos ouvidos falar. Aos poucos, ficou mais recorrente ter músicas em espanhol tocando na rádio e artistas brasileiros arriscando uma carreira nessa indústria tão lucrativa, plural e riquíssima (Anitta, essa é pra você!). E se a música sempre teve um caráter belíssimo de pertencimento e coletividade, para nós também nos permitiu conectar melhor com nossa própria identidade latina.

Não me entendam mal, o reggaeton não é e nunca será um gênero musical intrinsicamente brasileiro. O Brasil é um país continental e tem uma cultura muito vasta, quase impossível de ser catalogada totalmente. Mas se é difícil para nós definir com todas as palavras o que é ser brasileiro, imagina ser latino, que envolve cerca de 20 países com suas próprias particularidades? Eu consigo enxergar claramente como a música nos fez sentir mais próximos da América latina e nos sentir parte dela justamente por causa dessa pluralidade. Ao ter mais contato com o que está ao nosso redor é que podemos comprovar não só as diferenças, mas as semelhanças que nos unem. Ao parar de rejeitar tudo que vem do resto da América latina e sair um pouco da nossa síndrome de continente vira-lata, percebemos que, mesmo que os falantes de espanhol tenham algo a mais em comum que nós não temos, cada um dos países daqui é diferente do outro, e ser latino não significa ser igual. Uma das maiores características da nossa região, afinal de contas, é a pluralidade cultural, e tem sim um espacinho para os brasileiros.

Mas então... se a latinidade diz respeito a nós e somente a nós, o que os Estados Unidos tem a ver com o mal uso da palavra "latino"?

Não dá pra falar sobre xenofobia sem citar os americanos, infelizmente. "Latino", no território deles, passou a ser usado para se referir a imigrantes da América latina e seus descendentes, mesmo aqueles nascidos nos EUA e, em essência, americanos também. Eles, que não entendem e nem estão interessados em entender o que é a América latina, simplesmente juntaram todos nós em uma palavra só, que não só indica um caráter socio-cultural do lugar onde se nasce, mas que passou a indicar uma etnia. E isso é extremamente racista.

Isso já seria problemático por si só dentro dos Estados Unidos, mas lembra que falei sobre os americanos serem grandes colonizadores? Eles exportam seu estilo de vida para o resto do mundo através da indústria do entretenimento, e é por isso que o tempo todo somos bombardeados com definições errôneas de um povo que não é o nosso sobre o que nós somos. Bem chato, né?

Mas a gente não pode reclamar se nem mesmo nós formos atrás de entender o que somos. Não, latino não é um estilo musical (e você não é latina porque canta isso, ok Rosalia? haha). Não, latino não é uma etnia, pois dentro da América latina existe uma infinidade de grupos étnicos diferentes. E ainda digo mais: não, nem todo gringo descendente de latinos é um latino igual a quem nasceu e viveu a vida toda aqui, existe uma diferença entre quem é da América latina e quem é filho de imigrantes, que tem uma bagagem cultural não menos importante, porém diferente. E a gente pode e deve ter consciência disso.

No mais, ser latino é terrível e maravilhoso ao mesmo tempo, mas tenho muito orgulho da minha herança cultural e de amar e acolher não só o Brasil, mas nossos hermanos também. E como diz o grande meme do Patrick Estrela: GRAÇAS A DEUS NASCI NA AMÉRICA LATINA!


 Favoritos da quinzena

Música

Essa não foi uma quinzena muitos musical pra mim, o que é atípico! Mas posso destacar três músicas que não saem do play aqui em casa.

Seguindo ainda o tópico da latinidade, sim, eu sou team Shakira e Shakira: Bzrp Music Session, Vol. 53 é o meu hit favorito pra ouvir enquanto cozinho e fingir que odeio meu ex imaginário.

As outras duas são ceilings da Lizzy McAlpine, um mimo que veio direto do Tiktok, e Cognitive Dissonance da Sophie Holohan.

Livros

Eu li quatro livros em fevereiro e ainda estou obcecada por A vida invisível de Addie Larue, da V. E. Schwab. Um livro incrível sobre uma garota que vende a alma para viver para sempre, porém todas as pessoas que conhecer esquecerão dela no momento em que ela não estiver no mesmo ambiente. Achei a leitura muito envolvente e os personagens excelentes, principalmente o vilão!!!! 10/10 recomendo!


BRUNAVERSO

Não tenho muitas novidades, pois essas duas últimas semanas foram meio punk. Felizmente já tenho alguns capítulos escritos de "A crise Peter Pan", mas quero muito voltar a escrever logo! Sinto que minha criatividade tá um tanto bloqueada, e ainda não consegui começar o conto do projeto que falei na outra newsletter ): Mas março vai vir com tudo, eu creio!

Lembrando que os capítulos de "A crise Peter Pan" são publicados semanalmente toda quinta-feira aqui no site. Pra poder ler, basta virar membro do Clube através dos planos de assinatura do Catarse.

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